domingo, 3 de novembro de 2013

Projeto Volta Atlântico - Etapa 21 - De Volta ao Brasil (Fechando o Círculo).

Aproveito para fazer dois registros que complementam nossa estada no Porto da Praia - Cabo Verde.

No tempo de postagem do blog, que fiz numa lanchonete, no meio da praça, conheci uma figura muito carismática e que também fazia dali o seu escritório temporário. Era o Carlos, um espanhol, de Madrid, que estava em Cabo Verde, ajudando na criação de uma Federação de Judô.
Um detalhe interessante, Cabo Verde implanta um projeto, chamado Internet Para Todos, que disponibiliza navegação gratuita em todas as praças. Acredito que este acesso coletivizado, como serviço público e gratuito é uma tendência para um futuro breve.
 
Enquanto estivemos aqui ancorados, nossa ida para terra foi de bote, que deixávamos na pequena praia defronte. Logo no primeiro dia, um jovem nativo se aproximou de nós e se ofereceu para cuidar do bote. Era o Vitor, que fazia parte de um grupo de jovens que praticamente vivem ali na praia. Pescam, consertam redes para os barcos de pesca, jogam futebol na areia, dormem no relento, pois a chuva é rara e o clima ameno. Formam um grupo muito unido, onde tudo o que arrecadam é coletivizado. Sempre muito alegres, a cada dia que passamos ali, fomos simpatizando mais com o pessoal. Me lembraram o "Capitães de Areia", do Jorge Amado. Reunimos roupas, bonés, tênis, óculos, tudo que carregávamos na viagem, mas com pouco uso, e deixamos para eles. A impressão que me deu é que se revezavam no uso dos presentes. Em três dias, ficamos tão amigos que, na despedida já sentíamos "sodade" (saudade, na língua crioula, que é um português-afro).
 
Nossa última travessia do Atlântico, foi planejada a partir das informações de três livros, de três brasileiros que a fizeram, e se fundamenta no princípio do curso dos ventos e das águas nos dois hemisférios. Como vamos sair do hemisfério norte, para o hemisfério sul, teremos três momentos bastante característicos de navegação. No primeiro, com os ventos alísios e corrente, de nordeste, o que será para nós, um través largo. No segundo, aproximadamente na latitude 10º norte, entraremos na Zona de Convergência Inter Equatorial, que é uma faixa de instabilidades, poucos ventos, muita calmaria, e normalmente (nesta época do ano) vai até os 5º norte, ou seja, se estende por 300 milhas, ou mais. Na terceira, quando se encontra os alísios do hemisfério sul, vento e corrente de sudeste, que será orça, no início, passando a través, no final. Simplificando: No norte, tudo gira no sentido horário, no sul, no anti-horário, e no encontro das duas forças, uma zona de transição onde se anulam. Como veem, o planeta segue princípios bastante lógicos, só que o homem, descobriu tudo isto fazendo o "caminho das pedras" pela água. Foram séculos de navegação, reunindo dados e informações.
 
Nossa saída foi com pouco vento e motor. Nosso pano de prato, sendo arrastado na "máquina de lavar", atrai um pequeno tubarão (aproximadamente 1 metro e 50). Chegou a uns 50 cm do pano e o seguiu curioso. Foi o suficiente para passarmos o resto a viagem, tomando nossos banhos de reboque, com receio.
 
Começamos com lua cheia, que quando saia, ofuscava o tapete de estrelas do nosso teto.
 
Quando o alísio firmou, seguimos só de genoa, armada com o pau do spy, com um andamento muito bom e confortável. Tanto que até refiz uma costura na vela, em pleno uso.
 
Quando vento e corrente seguem na mesma direção, o mar alisa, e mesmo com vento forte, as ondas quase não crescem. Andamos muito rápido, acho que vai ser difícil um peixe alcançar a isca que viemos arrastando atrás de nós. O currico é a nossa chance de peixe fresco na dieta.
 
Os dias passam monótonos. Nada acontece, nada é preciso fazer, mas o andamento é perfeito. Vamos fazendo média de mais de 100 milhas/dia. A nebulosidade vai aumentando progressivamente.
 
Tivemos nossa primeira chuva, depois de um jejum de 134 dias. Desde os Açores não tínhamos chuva. Depois de tanto banho salgado, a água doce do céu é recebida com júbilo. O arco-íris que se forma do nosso lado, mais parece um portal para o novo mundo, e é para lá que nós vamos. O nosso velho novo mundo.
 
Partimos dos 14 graus norte. Nos 9 graus e 30minutos, o vento morreu. Parecia que entrávamos na Zona de Convergência. Depois de algumas horas de motor, o nordeste voltou e nos levou até 8º e 30', quando morreu em definitivo. Nosso plano era atravessar as 300, ou 400 milhas de calmaria, no motor, para não ficar sacudindo e judiando das velas. O risco era de esta zona ser ainda maior e faltar diesel. Levamos, além dos 120 litros do tanque, mais 110 litros em bombonas, que íamos repondo. Como demorei um pouco na reposição, numa noite de maior balanço, entrou ar na injeção do combustível, e o motor parou. Depois de uma varredura, para diagnosticar o problema, trocamos o filtro do diesel, sangramos o ar do sistema de injeção e o motor voltou a funcionar, para nosso alívio.
 
 
E assim seguimos por mais 3 dias. Só no motor. Pensando em como seria desgastante, no tempo das caravelas, enfrentar estas terríveis doldrums, como são chamadas. Com o intuito de racionar diesel, e ao mesmo tempo, ganhar rumo a leste, para estar mais positivo, quando encontrar os alísios de sudeste, e não ficar em orça muito apertada. O problema é que, quanto mais para leste, mais larga é a Zona de Convergência. Ou seja, é uma negociação constante com a natureza, só que tentando adivinhar os seus caprichos.
 
Nem o sol dava seus shows habituais, tal era a nebulosidade. As noites também eram, maior parte do tempo, um breu.
 
Só no 6º dia, tivemos o primeiro sinal de que não estávamos sozinhos no mundo. Apareceu o primeiro navio.
 
E assim se arrastava o tempo. Lemos, jogamos, dormimos. Considerando que, a noite, sempre um de nós está fazendo turno, acaba sobrando pouco tempo para estarmos juntos, pois quase sempre alguém está dormindo. Os fusos acabam ficando desencontrados, e a alimentação vira uma bagunça.
 
As vezes, o cansaço é tamanho que desmaiamos. Aqui o César adormeceu, sem nem tirar a lanterna da cabeça.
 
Nos 4 graus norte, encontramos vento novamente. Foram 350 milhas motorando. Só que o vento era sul-sudeste, Quase na cara. Começamos a encara-lo num motor-sail (motor e vela) para não derivar muito para oeste. Este vento foi se fazendo forte, a ponto de as aves, que sempre estiveram voando ao nosso redor, começarem a perder o medo e arriscar uma carona, para descansarem um pouco.
 
Uma delas se tornou bem íntima, e ficava tranquila, com nossa presença a menos de 1 metro.
Mas o vento nos preocupava. Não era exatamente o que esperávamos. Além de ser forte e constante, nos empurrava muito para oeste. O receio era de perder o rumo de orça e ser arrastado pela corrente, de novo para o Caribe. Depois de pegar este caminho, a volta é praticamente impossível. Só com muito motor, contra corrente de 1 a 2 nós e vento de 20 nós, ou mais.
 
Além de tudo, a nebulosidade continuava alta, e volta e meia tínhamos chuva, sempre acompanhada de uma aceleração do vento. Com nossa deriva para oeste, entramos numa rota de navios, com mão e contramão, e nós, no "canteiro central". Por várias vezes, tivemos que mudar rumo, e até cambar, para poder se manter a distância destes monstros. O AIS, mais uma vez, foi de grande ajuda.
 
No 9º dia, pela manhã, tínhamos os Penedos de São Pedro e São Paulo, no nosso través. Ficam no 0º e 50' norte, com 029º e 40' oeste. Pretendíamos passar longe destes temidos rochedos, mas deixando-os por boreste (direita). Acabamos deixando-os 0,8 milhas a bombordo (esquerda). Pertencem ao Brasil, e são tão inóspitos que em 1930 construíram ali um farol, que foi mantido só até 1933, tal a dificuldade para acesso e manutenção. Apesar da distância, víamos o farol, incorporado a rocha.
 
Aquela visão do primeiro pedacinho do Brasil começou a mudar a nossa situação. Aproveitamos um pequena trégua do vento, no amanhecer, e trocamos a genoa 2, pela 3, no enrolador. Com esta genoa, menor e mais firme, somada com a vela grande, no 2º riso, conseguimos orçar mais e melhorar nosso rumo.
 
Progressivamente o vento rodava, indo se firmar no sudeste. Antes da meia noite, cruzávamos a linha do equador, praticamente na longitude de 30º.
 
O vento continuava forte, tanto que nossa carona passava a noite conosco, mas agora vinha de um rumo já bem favorável, permitindo uma orça folgada.
 
Nossos dias iam ficando mais bonitos, nosso astral era ótimo, mas sentíamos cansaço e ansiedade para pisar em solo brasileiro. Não resistimos, e começamos a mudar os planos. Salvador estava muito longe para a nossa pressa. Colocamos então Recife no nosso plano de chegada. Passamos a 15 milhas de Noronha, deixando seu clarão, na madrugada, pelo nosso boreste (direita).
 
Não embarcamos nenhum peixe - 2 foram fisgados, mas arrebentaram a linha. Deviam ser grandes. Nossa dieta continuava na mesma, com enlatados. Ao longo da viagem, fomos descobrindo algumas alternativas bem interessantes para quem vive a bordo. Polvo, lula, marisco, preparados de várias maneiras, vinham complementar o rotineiro atum e a sardinha. Os feijões, cozidos no sal somente, sem os agregados da nossa feijoada brasileira, também constituíram uma ótima opção. Acho que são alternativas que nossa indústria alimentícia poderia copiar. Muito "práticos e saborosos".
 
Com o calor equatorial, e a água do mar numa temperatura perfeita, o banho de reboque era uma constante. Com o barco voando baixo, chegando as vezes a 7 ou 8 nós, o banho vira uma massagem radical.
 
No 13º dia, depois de 600 milhas numa linha reta só, com um vento entre 15 e 23 nós, que foi virando de través, tínhamos Recife na nossa proa, ...
 
 e Olinda, no nosso través. É o Brasil logo ali, gente!
 
Fizemos uma entrada magistral no canal do porto, só na vela, ...
 
e ancoramos na entrada do canal que leva ao Cabanga Iate Clube. Foram 1.550 milhas em 14 dias menos 2 horas. Uma bela performance, onde quase tudo aconteceu conforme o previsto. Fizemos contato por rádio, com o clube, e nos informaram que teríamos que aguardar por 3 horas, até o estofo da maré, para então termos o calado necessário para o nosso acesso.
 
Entramos e atracamos no Cabanga, onde o Firulete já se sente em casa, pois é a 4ª vez que por aqui passamos. Com a baixa maré, nossa quilha enterra na lama e o barco nem mexe. Acho que aqui vamos nos livrar dos parasitas que trazemos no casco, típicos do Atlântico norte. Demos entrada na secretaria do clube, onde já somos conhecidos, desde 2010, e passamos o resto do dia de preguiça, para recuperar da ressaca dos 14 dias e noites de navegação.
 
No dia seguinte, amanheceu chovendo. Apesar disso fomos para a rua, rever o Recife Antigo e tratar do nosso visto de entrada, no país. Isto implica em ir na Polícia Federal, Receita Federal e na Marinha.
 
Visitamos um centro de artesanato, instalado num pavilhão remodelado do porto, ...
 
com belíssimas obras de artistas e artesãos pernambucanos, onde é  evidente a criatividade do brasileiro.
 
Como estou a 1 ano fora, observo a cidade, tentando identificar as mudanças havidas. Me parece que o número de carros aumentou ainda mais, o patrimônio histórico, está ainda mais abandonado, sendo engolido e substituído pelo "moderno", quase sempre de mau gosto e comercialmente agressivo.
Comparativamente ao que vivenciei no último ano, nos mais de 20 países por que passei, salta aos olhos, o nosso descaso com o espaço público. A maior diferença entre o que se chama primeiro mundo e o nosso, é que lá o espaço público é de todos, enquanto aqui é de ninguém. Vivemos uma cultura do privado, e este talvez seja o nosso maior desafio cultural, se quisermos chegar a ser realmente desenvolvidos.
 
De qualquer forma, é muito bom ESTAR DE VOLTA AO BRASIL!
 
Temos ainda 1.420 milhas, para chegarmos até Floripa. Pretendemos, a exemplo de 2.010, fazermos em aproximados 30 dias. Dosando navegação e paradas estratégicas, para monitorarmos previsão do tempo, abastecermos o barco e a despensa e curtirmos alguns points do nosso litoral, para matarmos as saudades.
 
Nossa postagem definitiva, onde encerraremos nossa Volta Atlântico, se dará já em casa, provavelmente nos primeiros dias de dezembro. Até lá! Ou, aí! Dependendo de onde são e estão.